sábado, 3 de setembro de 2011

Minha velhice tranquila

Ele nasceu pobre e cresceu espreitando a opulência dos ricos.
Sentia-se humilhado pela situação financeira de seus pais.
Revoltou-se contra o Deus que faz nascer o sol sobre os justos e injustos. Virou as costas para Ele e decidiu abrir seu caminho "a machado".
No seu julgamente sempre limitado, o fiel da balança dividia o mundo entre endinheirados e pobres.

Desde o início de sua carreira buscou esquecer suas origens, pisava, maltratava, humilhava os seus subalternos.

Do olhar míope desse mundo de valores invertidos, ele chegou lá, naquele lugar onde meia dúzia acena a bandeira triunfante para os pé-rapados, no linguajar capitalista selvagem, os fracassados.

Eu não invejo essa riqueza.
Pode ser que eu tenha uma rara deficiência visual, tão rara quanto sem importância, que poucos se ocupam dela. Talvez, nesse mundo, meus valores é que estejam invertidos.

Que riqueza é essa que esse homem construiu, meu Deus?
Ele não fez amigos;
Sua esposa o abandonou cedo;
Seus filhos moram do outro lado do continente e não pretendem voltar, porque não têm laços que os prendam aqui... Casaram-se por lá, fizeram filhos por lá, definitivamente não querem retornar.
Eles foram adestrados para desenvolver redes de interesse ao invés de relacionamentos saudáveis.

A coroa dos nossos pais devem ser os netos. Alguém já disse que com esses, os pais atualizam as emoções que ficaram represadas na criação dos filhos e se permitem ser esbanjadoramente afetivos, sem limites, sem peias, sem preocupação, sem responsabilidades. Mas ele mal conhece os netos e os filhos, indiferentes e acostumados ao desamor paterno, não fazem questão dessa proximidade.

Ele queria ter uma velhice tranquila.
Para amealhar recursos, economizava ferreamente muitos tostões.
Contemplava o mundo com um olhar endurecido, egoísta, revoltado pela pobreza da infância.
Acumulou riqueza de forma mesquinha. Dizem que era sovina até para comer e que já abastado, controlava a despensa doméstica.

Há muito ganhou seu primeiro milhão, tem alguns imóveis alugados, dinheiro aplicado na bolsa, e nas últimas décadas, sempre desfilou as avenidas com um cobiçado modelo automobilístico, o clássico burguês de ascenção social.

O relógio do tempo é implacável para todos. Hoje, desligado de suas atividades profissionais, sua companhia frequente são os sintomas de algumas doenças degenerativas, o silêncio de sua opulente residência e os passos da enfermeira contratada para cuidar de seus achaques.

É... ele chegou lá, lá no topo, de onde se pode enxergá-lo acompanhado de sua imensurável solidão.